Em agosto de 1932, o regime soviético adotou uma das leis mais cruéis da sua história – o infame decreto sobre “a proteção da propriedade socialista”, que ficaria conhecido como a “lei dos cinco espigas”. Redigida com a assinatura direta de Josef Stalin, esta legislação tornou-se rapidamente num instrumento de terror de Estado, através do qual centenas de milhares de camponeses – muitas vezes famintos, exaustos e vulneráveis – foram castigados de forma brutal, chegando mesmo a serem executados. Não se tratava de grandes roubos nem de sabotagens planeadas: bastava apanhar do chão uma espiga de trigo deixada para trás na ceifa ou comer um punhado de grãos para se cair nas garras da repressão.
Na propaganda oficial, o decreto pretendia “proteger os bens dos kolkhozes” – as cooperativas agrícolas estatais. Na realidade, tratava-se de uma ofensiva cínica contra os últimos vestígios de dignidade humana num contexto de fome generalizada, provocada pela coletivização forçada, pela política brutal de requisições agrícolas e pelo plano deliberado de aniquilação do campesinato ucraniano. Os arquivos soviéticos comprovam que, só entre 1932 e 1933, mais de 54 mil pessoas foram condenadas ao abrigo desta lei. Dessas, mais de duas mil foram fuziladas. E o mais chocante: mais de 80% dos condenados eram camponeses pobres — não os chamados “inimigos de classe”, mas agricultores humildes que apenas procuravam sobreviver num inferno criado pelo próprio regime comunista.
A fome que assolou a Ucrânia e outras regiões da União Soviética não foi um simples desastre natural ou um problema económico. Foi uma política deliberada de extermínio. Um genocídio executado através de um arsenal de mecanismos repressivos: legislação punitiva, listas negras, batidas policiais e uma censura total sobre a tragédia em curso. Desde Moscovo, as ordens eram claras: os planos de recolha de cereais tinham de ser cumpridos a todo o custo, mesmo que isso significasse deixar milhões sem alimento. Por isso mesmo, qualquer tentativa de autossubsistência era considerada crime. A “lei das espigas” previa penas que iam desde 10 anos de trabalho forçado até à pena de morte – e tudo isto sem possibilidade de amnistia, sem direito à defesa, e com julgamentos sumários.
A crueldade atingia níveis indescritíveis quando as vítimas eram crianças. Documentos históricos comprovam que menores com apenas 12 anos podiam ser julgados e condenados por apanharem espigas no campo. Um dos casos mais emblemáticos é o de Mikhail Shamonin, um adolescente fuzilado em dezembro de 1937 por ter comido umas migalhas de pão. Ele não era criminoso, nem ativista, nem rebelde — era apenas uma criança esfomeada. Histórias como a de Mikhail existem aos milhares. São os rostos silenciosos de um Estado que declarou guerra aos seus próprios cidadãos.
Mesmo entre os juristas soviéticos, começou a emergir a consciência do horror legal em curso. Em 1936, o Ministério Público analisou cerca de 115 mil casos julgados com base nesta lei e concluiu que, em mais de 90 mil deles, as sentenças eram ilegais ou excessivamente severas. Propôs-se a revisão e reabilitação de 37 mil condenados. No entanto, em vez de permitir qualquer gesto de justiça ou arrependimento, Stalin ordenou o oposto: perseguição a quem tivesse sugerido a revisão dos casos. O resultado foi uma nova vaga de repressão ainda mais feroz — o chamado Grande Terror de 1937–1938.
O mais perverso de tudo isto foi o modo como a máquina jurídica soviética se tornou cúmplice da barbárie. A “legalidade socialista” transformou-se num mecanismo para destruir pessoas. A Justiça deixou de servir os cidadãos e passou a obedecer cegamente à ideologia. Milhares de agricultores foram presos por tentarem alimentar os filhos. As prisões enchiam-se de mães condenadas por roubarem uma espiga, de crianças levadas para campos de trabalhos forçados por apanharem migalhas nos trilhos do campo. A simples tentativa de sobreviver era tratada como sabotagem ao Estado.
Para dar uma aparência de legalidade, os julgamentos eram realizados de forma acelerada, muitas vezes sem advogados ou testemunhas. As sentenças, já definidas de antemão, serviam apenas para “exemplarizar” os restantes. As execuções eram sumárias. Quem não fosse fuzilado acabava deportado para campos de trabalho na Sibéria, onde morria de frio, de fome ou de exaustão. As crianças órfãs eram deixadas ao abandono ou acabavam institucionalizadas como “filhos de inimigos do povo”.
O regime soviético tentou, durante décadas, reescrever essa história, apresentando a lei como um ato necessário para proteger a coletividade. Diziam que “os trabalhadores exigiam punições exemplares” para impedir “a sabotagem dos inimigos do socialismo”. Mas por trás da retórica esvaziada de sentido, escondia-se a lógica de um Estado totalitário que arrogava a si o direito de decidir quem podia viver e quem devia morrer. A “lei das espigas” tornou-se o símbolo máximo da degradação moral do regime, onde a própria noção de justiça foi substituída por uma política de medo, castigo e obediência cega.
Estes crimes não podem ser relativizados nem esquecidos. Não foram “erros de percurso”, nem “excessos de um tempo difícil”. Foram crimes contra a Humanidade, planeados ao mais alto nível do poder soviético. Foram atos friamente executados contra um povo que apenas queria sobreviver. Só com a abertura dos arquivos e a exposição dos factos é que foi possível compreender a real dimensão do terror. Hoje, quando evocamos estas memórias, não o fazemos por vingança ou retórica. Fazemo-lo porque a justiça começa pela verdade. Porque a memória é a única arma que resta às vítimas. E enquanto lembrarmos o nome de Mikhail e de todas as crianças assassinadas por uma espiga de trigo, nenhum ditador, passado ou futuro, poderá apagar o seu crime.
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