O sacrifício de dois búfalos, cujas entranhas foram lidas como
oráculo, foi dos momentos mais dramáticos da cerimónia de três dias
conduzida em Díli pelos liurais e lia nain, chefes tradicionais
timorenses, como bênção ao monumento da “Chama Eterna”.
Serigala, uma cerimónia que se realiza, a nível nacional, muito
poucas vezes em Timor-Leste – a última foi em 2008, depois da crise e
dos conflitos que assolaram o país – é um ritual tradicional e animista
que envolve os “donos das coisas sagradas” de todos os municípios.
‘Sacerdotes gentilícios’, como eram apelidados pelos portugueses, que
integram o complexo sistema legislativo e judicial tradicional
timorense e que foram chamados para uma homenagem aos heróis
desconhecidos.
Ponto final nas cerimónias do 40.º aniversário das Falintil, a
serigala marcou a colocação da primeira pedra no monumento em forma de
estrela, a Chama Eterna, que vai ser construído no jardim em frente ao
Arquivo e Museu da Resistência Timorense (ARMT), anfitrião deste
encontro místico.
Eugénio Sarmento, ele próprio lia nain “de Soibada, a Coimbra de
Timor-Leste” é o guia para uma cerimónia cheia de símbolos, de memória,
de rituais ancestrais que ligam o passado dos reinos timorenses ao
passado mais recente da resistência e “ao futuro do país”.
O objetivo central era “pedir licença” para fazer um monumento que
representará os heróis desaparecidos e anónimos, que sirva como “sítio
de reflexão” sobre os “atos heroicos” e para “manter viva a chama de
todos os que lutaram pela libertação da pátria, como explicou ?Hamar’
Antoninho Baptista Alves, diretor do ARMT.
A cerimónia começou na noite de quarta-feira quando os chefes
tradicionais dos 13 municípios timorenses presidiram ao sacrifício de
uma galinha. A leitura das entranhas revelou que o projeto “tem um
pequeno problema”.
Informação confirmada na segunda fase da cerimónia, na noite de
quinta-feira, a mais dramática, em que primeiro se sacrificou um porco –
as entranhas voltam a ser consultadas e o seu sangue benze os
instrumentos e objetos centrais à cerimónia – e depois dois búfalos.
Um, vermelho, para chamar até ao jardim, próximo do Parlamento
Nacional e ao lado do ARMT, “as almas dos heróis” e depois, um preto,
para ‘fechar’ a cerimónia, voltando a unificar as armas neste espaço.
Os búfalos morrem junto a uma árvore onde depois são colocados os
seus chifres. O seu sangue trás ao centro da capital timorense, um
ritual secular e que pretende ser unificador.
Três pedras, de maior dimensão, uma do mar, uma das montanhas e uma
do rio, representam os timorenses que morreram na luta pela libertação,
13 pedras mais pequenas representam, uma por cada distrito, os mortos
dessas zonas e depois outras, de ainda menor dimensão, os de cada posto
administrativo.
Os búfalos morreram rápido – “o que é bom sinal”, explica Eugénio
Sarmento, e os oráculos são positivos, ainda que se mantenha a
informação inicial, da galinha: há um pequeno problema com o projeto.
“O problema não é com os mortos. É com os vivos”, explica ?Hamar’. O
ritual parece confirmar a alguma oposição política que existe, em Díli,
face a esta iniciativa da “Chama Eterna”.
As pedras e os 13 belak distritais (os discos dourados
representativos do sol e usados pelos chefes tradicionais), são benzidos
com o sangue dos animais sacrificados. Com tais, os panos tradicionais e
bandeiras das Falintil, Fretilin e de Timor-Leste, passaram a noite no
ARMT.
A cerimónia só terminou hoje com vários veteranos da luta, interna e
externa, a juntaram-se ao ritual, ajudando a colocar os objetos
benzidos, as pedras e os belak, no buraco onde fica a primeira pedra.
José Ramos-Horta, Mari Alkatiri, Rogério Lobato, os ex-guerrilheiros
Ma Huno e Mau Meta – este último de cadeira de rodas – juntam-se, tocam
as pedras, os objetos, fundindo a sua presença com as dos heróis aqui
homenageados.
Ma Huno, emocionado, não consegue controlar as lágrimas. Caminha com
dificuldade e mostra na cara a dor da memória que lhe evoca este
encontro carregado de misticismo.
“Nós, os que sobrevivemos a luta pela resistência, temos o dever
moral de contar e transmitir a história e os que tombaram habitam,
agora, na memória e no orgulho de nós que vivemos”, disse o diretor do
ARMT.
Na fusão cultural que é Timor-Leste, a cerimónia animista inclui uma
bênção de um padre católico que lança água benta por sobre as pedras e
restantes objetos marcados com o vermelho do sangue dos animais
sacrificados.
E termina com um minuto de silêncio.
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