Uma inesperada virtualidade do projecto Alqueva está a revelar-se à
medida que vão sendo conhecidos os resultados do Plano de Minimização de
Impactos no Património Arqueológico (PMIPA). “Quase de repente e no espaço de
duas décadas, passámos para uma nova realidade sobre o passado histórico do
Alentejo”, observa o arqueólogo Miguel Serra, frisando que o avanço no
conhecimento científico “é tal que a todo o momento aparecem novos dados que,
nalguns casos, colocam em causa a informação entretanto recolhida”, assinala o
investigador que participou em vários levantamentos arqueológicos na área sob
influência do Alqueva.
Mas subsistia uma lacuna: a população das aldeias de Beja, que durante
anos olhou à distância o trabalho de dezenas de arqueólogos envolvidos nos
trabalhos do PMIPA, comentava com frequência: “Eles chegam, retiram e levam e
nós sem saber o que é que eles andam a fazer.” Foi este lapso de informação que
Miguel Serra procurou, em parte, reparar, transmitindo o conhecimento histórico
acumulado entre 1995 e 2016 através da iniciativa “12 Lugares, 12 Meses, 12
Histórias — A Idade do Bronze na região de Beja”, organizada pela Câmara de
Beja em parceria com a empresa de arqueologia Palimpsesto.
Assim, entre Janeiro e Dezembro de 2016, uma vez por mês e sempre a um
sábado, foram programadas para as 12 freguesias do concelho de Beja percursos
pedestres, que variaram entre os 4,5 e os 14,5 quilómetros. Os itinerários
escolhidos contemplaram alguns sítios onde houve alguma descoberta arqueológica
de artefactos da Idade do Bronze, para além da observação e interpretação da
paisagem.
Na véspera de cada caminhada, à noite, era realizada na sede das juntas
de freguesia uma conferência sobre os sítios arqueológicos identificados no
local, e datados de entre o ano 2000 e 800 a.C.. “Tivemos conferências com meia
dúzia de pessoas e outras com dezenas de participantes, quase sempre marcadas
com debates intensos que se prolongavam durante horas”, refere o arqueólogo.
Ficou patente o desconhecimento sobre os resultados das pesquisas arqueológicas
relativas à Idade do Bronze realizadas nas 12 freguesias. Com efeito, a
informação recolhida “não tem sido divulgada para além de relatórios técnicos”,
acentua Miguel Serra. Uma situação que quis mudar.
Este esforço de transmissão de conhecimento acabou por recompensar os
dois lados porque, durante as discussões, surgia, por vezes, a indicação de
vestígios arqueológicos que a população conhecia há muito e que tinham sido
encontrados, na maior parte das vezes, no decorrer de trabalhos agrícolas.
Com estas visitas, cresceu a sensiblização e tornou-se recorrente o
desejo de ver parte do património arqueológico exposto nas terras onde foram
realizadas descobertas, assim como os locais onde foram recolhidos acessíveis a
quem os quisesse visitar. “Que pena essas coisas não ficarem à vista para
outros verem”, era um lamento comum, que demonstrava o secreto desejo de ver na
terra gente vinda de fora para contemplar o património descoberto.
Por se tratar de intervenções arqueológicas de salvamento devido às
obras de Alqueva, as acções passam pela recolha das peças, faz-se a avaliação
do seu contexto cronológico e geográfico e depois os locais onde foram
descobertos são inevitavelmente destruídos para a instalação das
infra-estruturas de rega.
Emília Pereira, 67 anos de idade, que participou num dos percursos
pedestres, confessou ao PÚBLICO a sua desolação por não ver “as tais ruínas dos
romanos”, pensando talvez que os vestígios descobertos tivessem a
monumentalidade que se observa, por exemplo, em Itália, no Egipto ou na Grécia.
No entanto, os esclarecimentos prestados por Miguel Serra acabavam por situar
os mais frustrados na verdadeira dimensão daquilo que a caminhada a pé se
propunha alcançar, ou seja, conhecer a história das comunidades que viveram
naqueles mesmos locais durante a Idade do Bronze, como faziam o culto dos
mortos ou como ocupavam a paisagem.
No decorrer de uma das caminhadas, o arqueólogo pára junto a uma linha
de água e descreve como ele próprio participou no levantamento de um povoado
que ali existiu e de onde é possível observar, à distância de alguns
quilómetros, a cidade de Beja. Na altura em que a comunidade da Idade do Bronze
ali esteve instalada, a colina onde hoje se situa a capital do Baixo Alentejo
“terá permanecido desabitada até à Idade do Ferro”, explicou Miguel Serra,
perante a surpresa de alguns dos caminhantes.
O arqueólogo continua a contar como há 2000 anos “surgiram povoados
abertos na planície com as suas cabanas redondas e silos escavados na rocha e
cemitérios com sepulturas em pedra assinaladas por estela gravadas ou câmaras
subterrâneas contendo mortos e dádivas.”
Esta época é marcada pela importância dada à exploração dos ricos
recursos naturais do território que é hoje a região de Beja e pela sua ocupação
extensiva, como o provam as centenas de sítios arqueológicos actualmente
conhecidos. Ao longo da Idade do Bronze, as comunidades encontravam-se
envolvidas num processo transformador de larga escala que abrangeu todo o
ocidente peninsular e que implicou uma grande abertura destas populações ao
exterior.
Miguel Serra realça a presença de material oriundo do Egipto nas
sepulturas daquela época, postas agora a descoberto, e revela que as primeiras
peças de bronze identificadas no sudoeste peninsular, onde se insere a região
de Beja, “vieram do oriente antes da chegada dos Fenícios”, assim como “o
âmbar, da região do Báltico.” Naquela época da pré-história já se realizavam
“trocas de produtos, de ideias, de tecnologias e até de pessoas” vindas de
grandes distâncias, referiu o investigador, que consegue espantar quem o ouvia
quando frisou que “os povos que aqui viveram durante a Idade do Bronze não eram
assim tão primitivos como por vezes se pensa.”
Umas vezes à chuva e outras sob o intenso calor do verão, quase 600
participantes ficaram a conhecer melhor a sua terra. Outros vindos do
Algarve, Alto Alentejo, Lisboa e até do estrangeiro aprofundaram os seus
conhecimentos sobre a pré-história do sul de Portugal.
Miguel Serra admite que Beja possa ser “dos poucos locais do país a
discutir a Idade do Bronze” dado o grau de conhecimentos já veiculado.
Ao todo, foram percorridos mais de uma centena de quilómetros pelas 12
freguesias do concelho de Beja. Nas 13 conferências realizadas participaram
cerca de 250 pessoas. Durante os percursos pedestres foram visitados 21 sítios
arqueológicos e outros 102 foram mencionados no decorrer dos debates. Os
números surpreendem o arqueólogo, que não anteviu a vontade das comunidades de
hoje conhecerem como viviam as que as antecederam.
Terminada a última caminhada da iniciativa “12 Lugares, 12 Meses, 12
Histórias — A Idade do Bronze na região de Beja”, no passado dia 17 Dezembro na
freguesia de São Matias, ficou a expectativa em muitos dos quase 600
participantes — na sua esmagadora maioria com idades acima dos 50 anos e alguns
rondavam os quase 80 anos — de poderem vir a participar em novas caminhadas
para conhecer mais sobre a história da sua terra. Ficam a aguardar que a Câmara
de Beja dê continuidade à experiência que custou aos cofres municipais 1500
euros. Uma das caminhantes com 68 anos expressou ao PÚBLICO o seu orgulho em
conhecer “o importante passado histórico” da terra onde nasce, a qual “não foi
ensinado na escola” dos filhos e netos, mas que ele agora pode ensinar.
Alqueva dá mas também tira
A transformação do modelo agrícola na zona sob
influência do Alqueva está a privar muitas das comunidades que nela residem de
poder circular. Como o PÚBLICO constatou nas caminhadas que acompanhou, muitos
caminhos naturais e vicinais estão a desaparecer. Cancelas e arame farpado vedam
as passagens e ninguém controla este ascendente desmesurado que cerceou os
acessos ao rio Guadiana
“Algumas das caminhadas que foram efectuadas já não são repetíveis
porque os caminhos já não existem” refere Miguel Serra, explicando que numa
delas “tivemos que abrir e fechar 14 cancelas na sua maioria de aparcamentos de
gado para chegar a um sítio arqueológico que estava no nosso itinerário.”
Caminhos naturais estão cortados por manchas de olival sem fim ou por
aparcamentos de gado que se seguem uns aos outros e que foram percorridos pelas
comunidades locais ao longo de séculos.
O arqueólogo alerta para uma das sequências deste estado de coisas. “Se
não houver condições de acesso aos sítios a informação sobre eles morre, até
porque os indivíduos munidos de detectores de metais delapidam sítios
arqueológicos importantes” por se encontrarem, como é óbvio, isolados.
In Público
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