quinta-feira, março 08, 2007

O ÚLTIMO VÔO SOBRE TIMOR

Tomei emprestado o título do livro para esta minha crónica de hoje...Até 1975 poucos haviam por esse mundo fóra que tivessem ouvido falar de Timor, enquanto Província Ultramarina portuguesa (colónia). Até mesmo a generalidade dos portugueses pouco daquelas terras conheciam, a não ser o "b, a, ba" das cartilhas de geografia do ensino primário que referiam o nome de duas ou três cidades, de uma ou duas montanhas e um resumo da organização política.
Depois da Revolução dos Cravos, em Portugal e mais exactamente com a invasão daquele território por parte da Indonésia, o mundo começou a ouvir falar de Timor. Principalmente quando dos acontecimentos bárbaros que antecederam a sua independência como país. Porém, daquele período em que os portugueses deixaram Timor, muito pouco é conhecido da realidade; factos, nomes, enfim. Por isso, quando relatos surgem, de pessoas que vivenciaram os acontecimentos, é de suma importância que os mesmos sejam divulgados. É o que estou pretendendo fazer, ao aconselhar a leitura de um livro interessantíssimo, "O Último Vôo Sobre Timor", da autoria de Abílio Ferreira, o qual poderá ser acessado em www.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=405253
Com autorização do autor, inclúo aqui alguns trechos:
“Como todos os dias, dirigi-me naquele sábado, oito de Agosto de 1975, ao aeroporto para fazer as carreiras que, de véspera, me tinham sido determinadas. O avião já se encontrava pronto e, juntamente com os passageiros, dirigi-me para ele. Estava a fazer os procedimentos para por os motores em marcha quando um funcionário do aeroporto se dirigiu a mim e disse para ir atender uma chamada telefónica urgente.” ...“ Fiz-lhe notar a minha condição de militar, embora ao serviço de uma organização civil, e ainda o facto de os passageiros já se encontrarem a bordo, pelo que faria a carreira que estava prestes a iniciar e depois resolveria. Que não, os aviões não deveriam descolar, eram ordens do Governador.” ...“Entretanto, o enviado de Portugal continuava retido em Bali e não chegaria ao Kupang. A Indonésia continuava a fazer o seu jogo sujo.” ...“Na noite de 19 para 20, o que todos temíamos aconteceu. Dá-se a sublevação da CCS, Quartel General e Destacamento de Material. Estava iniciada a guerra civil. No Quartel General, na cerimónia do hastear da bandeira, o alferes Lobato, do recrutamento local, dobra a Bandeira Nacional cuidadosamente, entrega-a ao oficial português mais antigo ...” ...“E o dia 26 chegou. Não sei se a decisão de mudar para a ilha de Ataúro já existia, ou se nasceu com o amanhecer desse dia, que seria o último passado em Timor.” “...Nas ruas, dezenas de refugiados timorenses passavam, arrastando penosamente o seu desgosto. Um velho maubere, com a sua típica lipa em volta da cinta, olhou-nos demoradamente talvez irmanado no mesmo desgosto. Possivelmente pensando, porque se teria deixado matar o heróico régulo D. Aleixo para defender a bandeira verde-rubra que agora lhe fugia. A tarde caía. Nos olhos do maubere o sol punha-se a oriente.” ...“Quando cheguei ao aeroporto olhei com saudade o velho Dove. Estava guardado por apenas um soldado e estava calçado com um monte de pedra em todas as rodas! A porta da cabina estava fechada à chave. Eu tinha-a deixado aberta e a chave dentro do avião.” ...“O regresso ao Ataúro era como um sonho! A ilha já de si maravilhosa, parecia-me ainda mais bela! Liberdade passava a ser agora para mim, uma palavra com significado.” ...“A declaração unilateral da independência de Timor por parte da Fretilin, surpreendeu-nos a todos completamente!Como poderiam ser tão ingénuos?! Acreditariam, por acaso, nas promessas de auxílio de outros “países socialistas” que estavam a milhares de quilómetros de distância?” ...“Para mim, apenas existiam dois réus naquele crime hediondo! A situação política em que Portugal se encontrava – ninguém mandava em ninguém! – e a Indonésia. A primeira porque permitiu a desagregação dos timorenses com a “invenção” dos partidos políticos. A segunda porque, aproveitando a primeira, fizeram o seu jogo. – autêntica partida de xadrez com cheque mate à vista – Jogo em que a UDT/MAC ingenuamente colaborou. Pelo caminho ficaram muitos peões, cavalos e até reis.” ...“O meu espírito estava longe daqueles corais e conchas. Aquela concentração de navios de guerra preocupava-me. Aquelas “barcaças” ali, não podiam ter outro significado: a invasão!- Os indonésios estão a bombardear Dili!Ah! Então era isso! Os meus pressentimentos tinham sido certos. O destino de Timor estava traçado.” ...“Preparei as poucas coisas que tinha no Ataúro e meti tudo numa mala. Faltavam as conchas! Não ia deixá-las ficar. Eram o resultado de muitas horas passadas naquelas maravilhosas águas do Ataúro. Tinha algumas a limpar em casa de um pescador. Fui buscá-las.- Ainda não estão todas prontas – disse o maubere.- Não faz mal. Vão como estão. Eu limpo-as depois.” ...“Eram exactamente três horas e cinco minutos daquela tarde de sete de Dezembro, quando iniciei a descolagem. Era a minha última viagem.O último vôo sobre o mar de Timor!O Ataúro foi ficando para trás. Lá à frente Dili, chamas e fumo!Tentei contar os barcos de guerra. Sete, suponho A distância era bastante para poder afirmar com segurança.Um pouco acima de mim, há uma camada de nuvens como que a cobrir toda a “miséria” que aos poucos vou deixando para trás. Vou pensando na hipótese de ser realmente abatido. Entro nelas e passo para cima. Emergindo lá ao longe, à direita, o Ramelau, a montanha mais alta de Timor, ergue-se imponente. Não posso deixar de sentir uma ponta de emoção. Os meus olhos humedeceram. Lá em baixo, um pouco de mim próprio.Procurei concentrar-me mais nas tarefas de bordo. Liguei o rádio e falei para Darwin. Olhei para baixo e pude ver entre as nuvens a vila de Viqueque, na costa Sul.Estava no rumo certo. Agora à minha frente era o mar, o mar de Timor, sobre o qual fazia o meu último vôo.”