quinta-feira, agosto 31, 2017
sábado, agosto 12, 2017
Raposo Tavares
O Brasil
fez-se enorme com este herói/vilão dos confins do Alentejo
António Raposo Tavares nasceu numa pequena aldeia de Mértola em 1598 e
daqui partiu com 20 anos rumo ao Brasil para realizar a primeira expedição de
reconhecimento geográfico entre o Atlântico e a cordilheira andina, o trópico
de Capricórnio e o Equador. Percorreu 12.000 quilómetros.
PUB
O
Brasil nasceu modesto comparativamente com o território que hoje ocupa. A parte
que cabia a Portugal, fruto da divisão imposta pelo Tratado de Tordesilhas, não
passava de uma faixa de terra ao longo do litoral atlântico com 2,8 milhões de
quilómetros quadrados de superfície. Mal o acordo entre os monarcas ibéricos
foi selado, a pressão castelhana procurou anular a presença portuguesa na
América do Sul. A resposta foi dada por aventureiros, que se embrenharam mata
adentro para estender as fronteiras o mais longe possível da costa. Nesta
imensa empreitada destacou-se um português nascido numa pequena aldeia do
Alentejo profundo e que ajudou a criar o quinto maior país do mundo.
PUB
Esses
grupos de exploradores, conhecidos por bandeirantes, saíam, entre os séculos
XVI e XVIII, do planalto de Piratininga, onde hoje emerge a cidade de S. Paulo,
e rumavam ao desconhecido, por sua conta e risco, para materializar o
alargamento dos limites territoriais do maior país da América do Sul . Hoje, a
nação brasileira cobre uma superfície com 8,5 milhões de quilómetros
quadrados.
António
Raposo Tavares, que nasceu em 1598 em S. Miguel do Pinheiro, uma pequena aldeia
do concelho de Mértola, junto à fronteira com o Algarve, “foi o maior de todos
os bandeirantes”, assinala o historiador português Jaime Cortesão na sua
obra “Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil”, editada
em 1958.
Entre a luz e a
sombra
Nascido
no seio de uma família suspeita de seguir a estrela de David, “o mais temível
dos bandeirantes” era judeu cristão-novo e tivera problemas com a Inquisição,
pormenor que explicará a sua permanente oposição à autoridade eclesiástica,
como veio a revelar o percurso da sua vida.
Órfão,
ainda criança, de mãe cristã-nova, viveu até aos 18 anos com a madrasta, também
ela várias vezes presa pela Inquisição sob a acusação de "judaísmo".
Anita Novinsky, professora na Universidade de S. Paulo, consultou na Torre do
Tombo documentos que diz comprovarem a ascendência judaica de boa parte dos
bandeirantes, entre eles Raposo Tavares.
O
pai, Fernão Vieira Tavares, partidário de D. António Prior do Crato,
administrava os dinheiros da Santa Sé gerados em Portugal até que foi acusado
de ter “desfalcado o papado, pelo que acabou por perder todos os seus bens”,
descreve o historiador António Borges Coelho. As contingências de uma vida
atribulada forçaram-no a uma carreira no Brasil, para onde parte em 1618, a
convite do conde de Monsanto donatário da capitania de S. Vicente. O filho, que
já completara os 20 anos, acompanha-o.
A
faceta rebelde de Raposo Tavares só viria a revelar-se após a morte do pai em
1622. Nessa altura residia num pequeno lugarejo no planalto de Piratininga,
onde hoje se localiza a cidade de São Paulo, fundada pelos jesuítas em 1554.
Foi ali que nasceu todo o seu entusiasmo e aptidão pelo principal modo de vida
paulista: formar expedições para escravizar índios que viviam nos territórios
na posse de Castela.
As
actas da câmara de S. Paulo, em 1627, já denunciavam o jovem nascido no
Alentejo “como amotinador do povo”, acusado de “matar e escravizar índios,
espalhando sangue e desolação”.
Alberto
Luiz Schneider, professor na Universidade de S. Paulo que integrou uma
delegação de académicos brasileiros na visita que efectuaram a Beja e Mértola
em 2012, para homenagear o bandeirante, descreveu ao PÚBLICO os contornos da
polémica que sempre marcaram a vida de Raposo Tavares. “Talvez os portugueses
não saibam como o tema veio a revelar-se um dos mais espinhosos na história do
Brasil”, começa por dizer o docente. E explica: De um lado, está “o assassino
responsável por massacres e a escravidão de milhares de índios na sequência da
mais despudorada e desumana barbárie”. Do outro, sucedem-se as descrições do
herói que desbravou o sertão brasileiro no meio de sofrimentos indescritíveis,
“revelam uma personalidade marcada pela bipolaridade, entre a lenda negra e a
lenda dourada, entre a luz e a sombra, sempre numa óptica radical.”
Um mundo dividido
ao meio
A
esta faceta entre o herói e o vilão sobrepõe-se a outra componente no ideário
de Raposo Tavares que se generalizou nos meios académicos brasileiros há várias
décadas: o fenómeno bandeirante. É, fundamentalmente, de natureza territorial e
consequência directa da célebre linha imaginária, negociada entre os reis
católicos de Castela e Aragão e D. João II de Portugal.
A 7
de Junho de 1494 foi assinado o Tratado de Tordesilhas que dividiu o mundo em
dois hemisférios, por um meridiano traçado a uma distância de 370 léguas a
oeste das ilhas de Cabo Verde, deixando a Castela tudo que ficasse no Ocidente
e a Portugal o que se situasse a Oriente. Estava criado o catalisador que anos
mais tarde acabaria por determinar as motivações dos bandeirantes.
A
localização nos mapas da linha imaginária que dividia os hemisférios “era um
exercício de projecção conceptual que não levava em conta nem os aspectos
físicos geográficos, nem a ocupação ameríndia do território”, observou Jaime
Cortesão. Para além das dificuldades técnicas na definição do território
português e espanhol, a divisão do continente “amputava a vasta unidade
geográfica e humana” entre os rios Amazonas e da Prata, e “não oferecia base
suficiente e viável à formação de um Estado”, analisa o historiador português.
“Revela uma personalidade marcada pela bipolaridade, entre a lenda negra
e a lenda dourada, entre a luz e a sombra, sempre numa óptica radical.”
Alberto Luiz Schneider, Universidade
de S. Paulo
Com
efeito, os espanhóis procuravam situar o meridiano de Tordesilhas de forma a
reduzir o mais possível o hemisfério da soberania portuguesa, numa tentativa
para afastar a sua presença da América do Sul.
Jorge
Pimentel Cintra, da Universidade de S. Paulo, outro dos docentes que se
deslocou ao Alentejo, realçou um dos argumentos a que a “sageza dos
portugueses” mais recorria para cercear os ímpetos da ocupação espanhola: “Onde
está a linha que não a vejo?”
Associada
à questão territorial, ainda se impunha a questão económica porque não havia
quaisquer riquezas minerais no planalto de Piratininga. A pequena povoação de
São Paulo vivia de uma agricultura quase de subsistência e do fornecimento de
escravos índios capturados, chamados “negros da terra”, para trabalhar nos
engenhos do açúcar e nas plantações de cana, no nordeste brasileiro.
Caça aos índios e
jesuítas
A
rapidíssima expansão da produção desta cultura pressionou a procura de
mão-de-obra e impulsionou o tráfico negreiro, sobretudo depois da ocupação
holandesa durante a primeira metade do século XVII. Faltavam braços para a
indústria açucareira e a alternativa residia na intensificação da caça ao índio, transformando S. Paulo na base mais activa dos bandeirantes.
Foto
É
neste contexto que Raposo Tavares parte na sua primeira bandeira com uma
centena de paulistas e 2000 índios, comandada por Manuel Preto. Decorria o ano
de 1629. Esta incursão foi preparada para destruir os grandes aldeamentos
criados pelos jesuítas para concentrar e catequizar os índios. Estavam
localizados na região do Guairá, a sul de S. Paulo, no actual estado do Paraná.
A
expedição iniciou o processo de expulsão dos jesuítas espanhóis e,
consequentemente, a ampliação das fronteiras do Brasil, assegurando a posse dos
territórios dos actuais estados do Paraná, de Santa Catarina e de Mato Grosso
do Sul. Seguem-se as razias comandadas por Raposo Tavares nos aldeamentos de
índios a sul do Mato Grosso e no norte do Rio Grande do Sul.
Jorge
Pimentel Cintra consultou uma carta escrita por um jesuíta contemporâneo do
“grande bandeirante” em que este sentencia: “Temos de vos expulsar (os
jesuítas) de uma terra que é nossa e não dos de Castela”. Raposo deixava claro
ao que vinha: assegurar a presença portuguesa face à ameaça da supremacia
castelhana.
Entre
1629 e 1632, as forças por si comandadas invadiram e destruíram todos os
aldeamentos de índios, no Guaíra, aumentando o território do Brasil entre o sul
de S. Paulo e o Rio da Prata.
“Era
mesmo a questão territorial” que dominava a vontade de Raposo Tavares mas “foi
tanta a destruição das feitorias jesuítas que até a gente vai sentindo uma dor
no coração”, confidenciou o académico brasileiro.
Raposo
Tavares vai percorrendo os sertões do interior amazónico “assegurando a
presença portuguesa face à ameaça castelhana”, descreve Jaime Cortesão que
associa a escalada das bandeiras à “insurreição latente” iniciada em 1634 no
Alentejo e no Algarve. Os revoltosos que se insurgiam contra o domínio filipino
eram “brutalmente esmagados” pelo exército espanhol que invadiu Portugal em
1638. É neste contexto revolucionário que as expedições do bandeirante se
situam.
“Era mesmo a questão territorial” que dominava a vontade de Raposo
Tavares mas “foi tanta a destruição das feitorias jesuítas que até a gente vai
sentindo uma dor no coração”, confidenciou o académico brasileiro.
A mando de D. João
IV
O
historiador português realça “um paralelismo profundo e evidente entre as
causas e efeitos do que se passa na Península Ibérica e nas duas Américas, lusa
e castelhana, entre 1630 e 1640”, ano da restauração de Portugal, que veio dar
novo rumo às actividades de Raposo Tavares. As suas incursões no sertão
brasileiro culminariam com a última e maior expedição da sua vida: a chamada
bandeira de limites.
Em
1647, um ano antes do arranque da grande operação que iria definir grande parte
do actual território brasileiro, Raposo Tavares “terá estado em Portugal” e D.
João IV tê-lo-á "encarregado de uma missão em grande parte secreta",
presume Jaime Cortesão. A expedição tinha como objectivo descobrir metais
preciosos mas a outra motivação para a jornada, mantida em segredo, passava
pelo estabelecimento dos limites territoriais do Brasil para oeste da linha de
Tordesilhas.
Cortesão
conta que o padre António Vieira, contemporâneo e confidente dos bandeirantes,
descreve ao padre provincial do Brasil pormenores da bandeira de Raposo
Tavares: “No ano 1648 partiram os moradores de S. Paulo ao sertão, em demanda
de uma nação de índios, chamados os serranos, com intento de, ou por força ou
por vontade, os arrancarem das suas terras e os trazerem às de S. Paulo e aí se
servirem deles como costumam.” Mais adiante, o padre jesuíta descreve a
constituição dos expedicionários: “Constava todo o arraial de 200 portugueses e
mais de mil índios de armas, dividido em duas tropas. A primeira governava o
mestre de campo António Raposo Tavares e a segunda o capitão António Pereira.”
A
bandeira internou-se de tal modo no interior amazónico que se encontrou com os
castelhanos no Peru. Mas antes de lá chegar cortaram planaltos, que os
obrigaram dezenas de vezes a puxar os batelões e as cargas que transportavam à
corda ou à vara por terra. “Atravessaram pantanais mortíferos, rasgaram picadas
na selva, onde o índio, a onça e a cobra espreitavam. A lama transformou-se em
abismo e afoga os homens”. Os mosquitos formavam nuvens. Depois do pantanal,
surge a savana “sem fruto ou água para molhar a goela ressequida”. A fome era
extrema. Encontravam nas “raízes e nos frutos agrestes das árvores o maior
regalo dos enfermos. Os que restam tremem de febre, devorados pela doença”,
descreve o padre António Vieira.
“Atravessaram pantanais mortíferos, rasgaram picadas na selva, onde o
índio, a onça e a cobra espreitavam. A lama transformou-se em abismo e afoga os
homens”. Os mosquitos formavam nuvens. Depois do pantanal, surge a savana “sem
fruto ou água para molhar a goela ressequida”. A fome era extrema. Encontravam
nas “raízes e nos frutos agrestes das árvores o maior regalo dos enfermos. Os
que restam tremem de febre, devorados pela doença”
Padre António Vieira
Começa
a escalada dos Andes, uma das mais altas cordilheiras da Terra. A neve e o
vento gélido tolhem para sempre o corpo dos que ficaram feridos. Deixam pelo
caminho e em farrapos a pouca vestimenta que ainda traziam no corpo. O mais
indomável e feroz dos índios, o chiriguano, não lhes dá tréguas.
Desceram
em jangadas os rios Guaporé, Mamoré e Madeira para entrar no Amazonas,
navegaram durante 11 meses sem saber onde se encontravam, até chegarem à foz na
cidade de Belém no Pará. Depararam-se com os “estarrecidos soldados” do posto
militar ali instalado, perplexos com o aspecto dos exploradores. Só então estes
conhecem a sua localização.
Depois
de terem atravessado o Mato Grosso, a Bolívia, o Peru e a Amazónia, percorrendo
mais de 12.000 quilómetros, os sobreviventes da épica travessia pela floresta
amazónica retornaram a São Paulo “esquálidos, famintos, esfarrapados, o cabelo
e a barba hirsuta, mais parecendo fantasmas ou bichos que seres humanos.”
Raposo Tavares chegou “tão desfigurado à sua casa, que nem parentes nem amigos
o reconheceram”, reporta Jaime Cortesão.
Nos
três anos e alguns meses que durou a odisseia, apenas 59 brancos e alguns
índios concluíram o titânico périplo.
Debilitado
por sucessivas lutas e caminhadas no sertão, o mais famoso bandeirante faleceu
em 1656, poucos anos depois de concluída a célebre bandeira dos limites,
“virtualmente abandonado, talvez até pobre” refere o historiador português.
Missão falhada
“O
grande descobridor do Amazonas” que Vitorino Nemésio comparou a Vasco da Gama,
Pedro Álvares Cabral e Fernão de Magalhães, “o homem ocidental que empreendeu e
executou uma das maiores explorações de todos os tempos”, era totalmente
desconhecido até ao início do século XX, tanto em Portugal como no Brasil.
ENRIC VIVES-RUBIO
A
identidade de Raposo Tavares só foi descoberta em 1905 quando o então
presidente da República do Brasil, Washington Luiz, decidiu ordenar a
elaboração da biografia do bandeirante nascido no Alentejo.
Jaime
Cortesão associa o “estranho silêncio” ao malogro da expedição do ponto de
vista dos objectivos que mais interessavam a D. João IV: o descobrimento de
minas de prata. A difícil situação financeira, económica e social com que se
debatia o reino em guerra com Espanha após a restauração da independência em
1640 fez alimentar no monarca “ a esperança do descobrimento de outro Potosi”
(mina de prata que os castelhanos tinham descoberto no Perú).
E
aponta ainda a influência “dos filhos de Inácio Loyola com a conivência dos
dirigentes da nação portuguesa que consideraram Raposo Tavares inimigo da
Companhia de Jesus” para justificar o seu esquecimento. Na luta que sustentou
com os jesuítas portugueses e castelhanos, encarnou e defendeu o princípio da
supremacia da jurisdição civil sobre a eclesiástica, recusando-se a
subalternizar a soberania nacional a qualquer hierarquia religiosa.
Seja
como for, António Raposo Tavares é hoje considerado um dos grandes construtores
do Brasil e inúmeros escritores, sociólogos, historiadores e professores deste
país continuam a escrutinar a vida e a acção do bandeirante nascido no Alentejo.
Hoje, no maior país da América do Sul são inúmeras as praças, estradas, museus,
escolas e outras instituições públicas e militares a que foi dado o seu nome. O
sistema de ensino destaca-o nos manuais escolares e os académicos continuam a
discutir a “lenda dourada e a lenda negra” que envolve a sua personalidade.
A
historiografia brasileira sempre atribuiu a violência dos paulistas à cobiça
por metais e pelos índios para escravizar. Sem excluir esses interesses, Anita
Novinsky, que pesquisou durante anos na Torre do Tombo, descortinou nos
documentos consultados uma “forte razão ideológica” nas motivações dos
bandeirantes. A esmagadora maioria deles tinham membros da família nos cárceres
inquisitoriais. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição que funcionou em Lima,
hoje capital do Perú, “condenou 80 pessoas, 64 por judaísmo, entre 1635 e 1639,
no auge do bandeirismo”, revela a investigadora.
A
memória do bandeirante falecido em São Paulo, em 1658, só viria a ser
resgatada, no Alentejo, em 1966 por iniciativa das autoridades paulistas, que
ofereceram à cidade de Beja uma obra escultórica que está exposta na única
praça da região que ostenta o seu nome.
É
frequente o cidadão comum olhar a figura de bronze, com cerca de três metros de
altura, como sendo um monumento aos caçadores, dada a pose escolhida pelo autor
brasileiro. Não se conhecem outras iniciativas que a Câmara de Beja ou de
Mértola, antes ou depois do 25 de Abril, tivessem realizado para divulgar a
história de Raposo Tavares.
A
omissão continua a ser mantida e o mais famoso bandeirante do Brasil é quase um
desconhecido na cidade de Beja, apesar da estátua. Nem na terra onde nasceu, em
S. Miguel do Pinheiro, se sabia que era dali natural até que a delegação de
académicos brasileiros da Universidade de S. Paulo, convidados pelo
Departamento Histórico e Artístico da Diocese de Beja e a Agência Regional de
Turismo do Alentejo ali se deslocou em 2012 para descerrar na capela onde se
julga que o bandeirante terá sido baptizado uma placa com a seguinte frase:
“Como Vasco da Gama em relação ao Índico, ou Fernão de Magalhães ao Pacífico,
Raposo Tavares mediu a sua grandeza por dois dos maiores padrões da Natureza:
os Andes e o Amazonas."
In Público (Lisboa)
quarta-feira, agosto 02, 2017
Subscrever:
Mensagens (Atom)