sexta-feira, agosto 21, 2015

Tradições Timorenses

O sacrifício de dois búfalos, cujas entranhas foram lidas como oráculo, foi dos momentos mais dramáticos da cerimónia de três dias conduzida em Díli pelos liurais e lia nain, chefes tradicionais timorenses, como bênção ao monumento da “Chama Eterna”.
Serigala, uma cerimónia que se realiza, a nível nacional, muito poucas vezes em Timor-Leste – a última foi em 2008, depois da crise e dos conflitos que assolaram o país – é um ritual tradicional e animista que envolve os “donos das coisas sagradas” de todos os municípios.
‘Sacerdotes gentilícios’, como eram apelidados pelos portugueses, que integram o complexo sistema legislativo e judicial tradicional timorense e que foram chamados para uma homenagem aos heróis desconhecidos.
Ponto final nas cerimónias do 40.º aniversário das Falintil, a serigala marcou a colocação da primeira pedra no monumento em forma de estrela, a Chama Eterna, que vai ser construído no jardim em frente ao Arquivo e Museu da Resistência Timorense (ARMT), anfitrião deste encontro místico.
Eugénio Sarmento, ele próprio lia nain “de Soibada, a Coimbra de Timor-Leste” é o guia para uma cerimónia cheia de símbolos, de memória, de rituais ancestrais que ligam o passado dos reinos timorenses ao passado mais recente da resistência e “ao futuro do país”.
O objetivo central era “pedir licença” para fazer um monumento que representará os heróis desaparecidos e anónimos, que sirva como “sítio de reflexão” sobre os “atos heroicos” e para “manter viva a chama de todos os que lutaram pela libertação da pátria, como explicou ?Hamar’ Antoninho Baptista Alves, diretor do ARMT.
A cerimónia começou na noite de quarta-feira quando os chefes tradicionais dos 13 municípios timorenses presidiram ao sacrifício de uma galinha. A leitura das entranhas revelou que o projeto “tem um pequeno problema”.
Informação confirmada na segunda fase da cerimónia, na noite de quinta-feira, a mais dramática, em que primeiro se sacrificou um porco – as entranhas voltam a ser consultadas e o seu sangue benze os instrumentos e objetos centrais à cerimónia – e depois dois búfalos.
Um, vermelho, para chamar até ao jardim, próximo do Parlamento Nacional e ao lado do ARMT, “as almas dos heróis” e depois, um preto, para ‘fechar’ a cerimónia, voltando a unificar as armas neste espaço.
Os búfalos morrem junto a uma árvore onde depois são colocados os seus chifres. O seu sangue trás ao centro da capital timorense, um ritual secular e que pretende ser unificador.
Três pedras, de maior dimensão, uma do mar, uma das montanhas e uma do rio, representam os timorenses que morreram na luta pela libertação, 13 pedras mais pequenas representam, uma por cada distrito, os mortos dessas zonas e depois outras, de ainda menor dimensão, os de cada posto administrativo.
Os búfalos morreram rápido – “o que é bom sinal”, explica Eugénio Sarmento, e os oráculos são positivos, ainda que se mantenha a informação inicial, da galinha: há um pequeno problema com o projeto.
“O problema não é com os mortos. É com os vivos”, explica ?Hamar’. O ritual parece confirmar a alguma oposição política que existe, em Díli, face a esta iniciativa da “Chama Eterna”.
As pedras e os 13 belak distritais (os discos dourados representativos do sol e usados pelos chefes tradicionais), são benzidos com o sangue dos animais sacrificados. Com tais, os panos tradicionais e bandeiras das Falintil, Fretilin e de Timor-Leste, passaram a noite no ARMT.
A cerimónia só terminou hoje com vários veteranos da luta, interna e externa, a juntaram-se ao ritual, ajudando a colocar os objetos benzidos, as pedras e os belak, no buraco onde fica a primeira pedra.
José Ramos-Horta, Mari Alkatiri, Rogério Lobato, os ex-guerrilheiros Ma Huno e Mau Meta – este último de cadeira de rodas – juntam-se, tocam as pedras, os objetos, fundindo a sua presença com as dos heróis aqui homenageados.
Ma Huno, emocionado, não consegue controlar as lágrimas. Caminha com dificuldade e mostra na cara a dor da memória que lhe evoca este encontro carregado de misticismo.
“Nós, os que sobrevivemos a luta pela resistência, temos o dever moral de contar e transmitir a história e os que tombaram habitam, agora, na memória e no orgulho de nós que vivemos”, disse o diretor do ARMT.
Na fusão cultural que é Timor-Leste, a cerimónia animista inclui uma bênção de um padre católico que lança água benta por sobre as pedras e restantes objetos marcados com o vermelho do sangue dos animais sacrificados.
E termina com um minuto de silêncio.

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