O ouro do Brasil
Portugal não "roubou" ouro
algum ao Brasil: na verdade, nem 7% do metal precioso chegou aos cofres
portugueses
De todas as graves palermices que se
vão contando sobre o passado comum a portugueses e brasileiros, poucas serão de
refutação mais simples, mas de efeito mais largo e destruidor, que a noção de
que Portugal "roubou" ouro brasileiro, ou de que esbulhou esse seu
antigo território hoje feito grande nação independente. Trata-se de falsidade
grotesca e sem ponto por que se lhe pegue, mas amplamente divulgada pela
indústria da lusofobia. Por um lado, e será esse o primeiro argumento a atirar
aos desinformados, Portugal não poderia "roubar" de si mesmo. O
Brasil era terra portuguesa, foi-o de 1500 a 1822, e era-o então tanto, e com o
mesmo estatuto, as mesmas prerrogativas e a mesma dignidade que qualquer outra
parcela do todo nacional. Não foi território conquistado; foi país feito,
erguido onde antes nada havia e jamais houvera para lá de grupos confusos, sem
consciência de si, desconhecedores da linguagem escrita, desorganizados e
antagónicos, cuja vida se fazia de constante migração, combate cruel e
canibalismo. Ao arribar na costa brasileira, pois, Portugal apostou-se na sua
descoberta para sul e norte, que se fez com as expedições de Gonçalo Coelho e
Gaspar de Lemos; percebido o Brasil como parte de continente maior, e não como
ilha, Portugal instalou nele feitorias comerciais para a exportação de madeiras
e demais produtos exóticos. A mais apreciada das madeiras ali extraídas, o
pau-brasil, viria a rebaptizar a nova terra. Seguiu-se, para espantar o
interesse de competidores europeus, o assentamento militar, o povoamento e o
aproveitamento em maior escala do território. Foi essa a estratégia a inspirar
a expedição de Martim Afonso de Sousa, primeiro grande pioneiro brasileiro; foi
ela, também, a conduzir à instituição de um Governador Geral do Estado de Brasil,
cargo de que Tomé de Sousa foi o primeiro ocupante. Mem de Sá, que lhe seguiu
no governo do Estado do Brasil, expulsou definitivamente os franceses e lançou,
com o amparo de Lisboa e da Igreja, bom alicerce do que viria a ser a actual
nação brasileira. O que se seguiu foi a construção do Brasil. Por toda a parte
se forjaram ferros, partiu pedra, nasceram muralhas, recriaram as instituições
trazidas da Europa, se semeou com câmaras e cartas de Foral o auto-governo
pelos brasileiros - os portugueses do Brasil, avós dos brasileiros dos nossos
dias -, se fizeram aldeamentos para os índios, casas para ensinar a ler e a
contar e colégios onde as gentes deste Portugal americano descobriam a álgebra
e a lógica, o latim, o grego, a música e o direito.
Tão grande empresa não se faz sem
recursos, e a de Portugal no Brasil correspondeu a não menos que à edificação
de uma nova Europa onde jamais se fizera uma estrada, se conhecera a
civilização, se escrevera um livro ou erguera algo em pedra. Ora, imenso,
arrasador, foi para Portugal o custo de fazer o Brasil quando já tão ocupado se
achava com a protecção do seu império em África, na Ásia e na Europa. O leitor
surpreender-se-á, pois, conhecendo o que representava para Portugal, em pleno
pico da produção açucareira no Brasil, aquele Estado para os cofres da
monarquia: 5 - cinco – por cento dos rendimentos gerais do Estado; isto é, o
Brasil foi, até ao final do século XVII, financeiramente irrelevante para o
império. Considerando, com efeito, o que nele investiu Lisboa, parece seguro
que só em momento tardio se tornou a província de além-mar lucrativa para
Portugal. Mas nem por isso se desinteressou o reino dela, nem por isso a
abandonou ao jugo dos grandes capitalistas de Amesterdão quando estes a
separaram da pátria-mãe e nem por isso a abandonou à sua sorte. Lisboa percebeu
sempre a relevância estratégica do Brasil e a importância da obra civilizadora
que lá se realizava. E, se é verdade que a arriscada aposta que fez nestes
primeiros duzentos anos da existência brasileira se lhe faria lucrativa no
século XVIII, é-o igualmente que Portugal não poderia ter antecipado a fabulosa
riqueza mineral que acabaria por lá ser descoberta.
Porém, desvendado o que representou
para o orçamento português o Brasil nos primeiros duzentos anos da sua
existência, impõe-se um esclarecimento quanto ao tão falado, tão estudado, tão
debatido ouro brasileiro. Se por volta de 1630 o Brasil era centro
inquestionável da produção mundial de açúcar - estima-se que seria de produção
brasileira 80% do produto chegado a Londres - e o Brasil representava nesse
tempo 5% das receitas do Estado, é sabido que o Estado do Brasil ganhou
rapidamente protagonismo económico ao longo do século XVIII. Foi esse
protagonismo económico que acabou por ditar a sua autonomização política em
1815, com a elevação do Estado a Reino, e a independência em 1822. A rápida
ascensão económica do Brasil ao longo das centúrias de XVII e XVIII é
inseparável da exploração aurífera, e a verificação dessa evidente correlação
bastaria, por si só, para desmentir a tese de esbulho. Embora muito
regulamentada pela Coroa, a exploração do ouro e diamantes brasileiros era
empreendimento essencialmente privado e cujos principais actores eram
brasileiros - isto e, portugueses recém-chegados ou há muito residentes no
Brasil. O Estado central, pois, limitava-se a cobrar impostos sobre o ouro
extraído no Brasil por portugueses do Brasil. Essa taxa, o Quinto Real,
correspondia a um quinto - ou 20% - do ouro extraído, pertencendo legalmente o
restante a quem o encontrasse. A lei, contudo, foi sendo mais ignorada que
escrupulosamente cumprida, estimando o historiador britânico Anthony Disney que
nem um terço do ouro brasileiro acabou submetido ao Fisco. A fazer fé no
cálculo minucioso, informado e geralmente aceite de Disney, teriam chegado aos
cofres da Monarquia uns parcos 7% do ouro brasileiro. No final do século XVIII,
Lisboa tentaria combater a evasão fiscal reduzindo o imposto cobrado, que era
de apenas 10% à data da independência.
Entre 1720 e 1755, chegaram a Lisboa
do Brasil, em média, 15 a 20 toneladas de ouro por ano. Dessas, três ou quatro
eram propriedade do Rei, servindo para a defesa geral do Estado, sua manutenção
e desenvolvimento. Grande parte desse ouro regressou ao Brasil em forma de
novas cidades, de povoamento de terra então deserta, do apetrechamento de
fortalezas, da edificação de estradas, hospitais, pontes e colégios. Outra
parte, oitenta por cento, dessa fortuna arrancada à terra era privada, e chegou
a Lisboa para pagar a importação de artigos metropolitanos pelo Brasil. A
grande dinamização do comércio entre a Metrópole e o Estado do Brasil durante o
século XVIII é prova da saúde da economia do império e, nele, da das suas
parcelas europeia e americana. Onde está, portanto, o ouro brasileiro? Nas
actuais fronteiras do Brasil, que se garantiram com as expedições e a sábia -
mas cara - política externa que ajudou a custear; está nas fortalezas com que
se defendeu o Brasil de predadores estrangeiros, em incontáveis edifícios de
utilidade pública, em cidades, fábricas, fazendas e colégios. O ouro do Brasil
serviu para fazer o país imenso que a monarquia portuguesa legou aos
brasileiros.
Rafael Pinto Borges
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