Os crentes festejam, religiosamente, o Domingo de
Páscoa, mas o grande dia dos eborenses da minha geração era a
“Segunda-feira de Festa”, feriado municipal, em que tinha lugar uma
celebração de raiz popular. Numa tradição vinda dos avós, muitas
famílias de Évora comiam o assado no Alto de São Bento, uma colina de
granito, arborizada e fresca, a cerca de 2 km das Portas da Lagoa, na
direcção de Arraiolos, onde, há mais de 3000 anos, existiu um castro da
Idade do Ferro. Reminiscência pagã, a anunciar a primavera, esta romaria
popular, no dia a seguir ao Domingo de Páscoa, não tinha deuses nem
santos. Para mim e para a maioria dos que ali confraternizavam, São
Bento era apenas o nome de uma pequena elevação do terreno com três ou
quatro moinhos abandonados e em ruína.
Seguras com
pedras, para que o vento as não levantasse, as toalhas brancas eram
mostruários das muitas e variadas confecções ao dispor e regalo da
família e de um ou outro que passasse ou se juntasse ao grupo. Dessas
confecções, ficaram-me na memória o ensopado trazido de casa feito e
aquecido ali em flume de chão improvisado com pedras, o borrego com
ervilhas, a costeletas panadas, o coelho frito, as filhoses, os pasteis
de grão, a enxovalhada e outros bolos caseiros. Mas havia sempre uma
iguaria comum a todas, própria desse dia. Era o assado, ou seja, a perna
de borrego tostadinha, com batatinhas novas e muita cebola, em
assadeira de barro queimada pelo forno de lenha. Como acompanhamento
havia, por tradição, salada de alface muito segadinha.
Os meus pais
não apreciavam estas festanças de comezainas, com muito pó, muitas
moscas e bebedeiras à mistura. Mas eu sempre gostei e muitas foram as
vezes em que, adolescente, passei esse dia no Alto de São Bento,
saltando de chaparro em chaparro ou, o que é o mesmo, de família em
família, saboreando o que de muito bom por lá havia. Os mantimentos e o
vinho para um dia inteiro eram propositadamente abundantes a contar com
os muitos amigos, que sempre apareciam de mãos nos bolsos. Havia quem
levasse música em grafonola de dar corda, permitindo baile e animação
até às tantas.
O Nem eu nem o povo aqui em festa sabíamos que dois
anos depois da conquista de Évora, em 1165, por Geraldo Geraldes, o Sem
Pavor, e do foral que lhe foi dado por D. Afonso Henriques, se erguia,
no sopé desta colina, uma pequena ermida dedicada a São Bento. Frade
italiano nascido no ano de 480, em Núrsia, foi o fundador do monaquismo
ocidental e o criador da Ordem Beneditina, organização religiosa que
alude ao seu nome. Mais de um século depois, em 1274, nascia sobre esta
ermida o convento de São Bento de Castris, da Ordem de Cister, uma das
mais antigas instituições religiosas femininas. Fundado, por D. Urraca
Ximenes, este local tornou-se motivo de peregrinação que o tempo fez
esquecer como tal, mas que permaneceu como pólo de confraternização
popular.
Também não sabíamos que este local ficou na história de
Portugal, durante a revolução de 1383-1385, conduzida pelo Mestre de
Avis. À época, era abadessa do convento Dona Joana Peres Ferreirim (dama
da família de Dona Leonor Teles, rainha a quem o povo cognominou de
Aleivosa). Segundo Fernão Lopes, a infeliz religiosa, que se escondera
na Sé Catedral, durante os tumultos, foi encontrada e arrastada pela
multidão, até à Praça do Geraldo, onde morreu às mãos do povo.
Logo pela manhã partiam, uns a
pé, outros em carroças, carregadas de cestos, garrafões, mantas e
cadeirinhas, para ali se instalarem o dia todo, à sombra de uma
azinheira ou de um sobreiro. Pela encosta da colina virada para a cidade
fervilhava a animação. Cada árvore, uma família.
António Galopim de Carvalho