Em Portugal todos sabem o que é carraspana, o título da minha crónica de hoje. No Brasil não se usa esse termo mas alguns outros que significam a mesma coisa. Aliás, também em Portugal existem muitos mais.
Quando cheguei a Évora naquele dia 13 de Outubro, as primeiras pessoas a visitar foram, lògicamente, os familiares e de pronto tratei de arrumar a minha hospedagem na casa de minha mãe. No dia seguinte parti para uma pequena digressão pelos recantos da cidade em busca dos amigos. Eu já estava preparado para algumas surpresas, mas não para tantas, pois muitos deles já partiram para outra dimensão. Lamentei as perdas e fui encontrando os ainda vivos.
Nessa tarde de quinta-feira, conversando com o amigo Manata, velho companheiro de caçadas e pescarias, fui convidado para um almoço de lebres assadas na casa de um outro amigo comum na segunda-feira seguinte.
Chegado o dia, como não era muito longe --- uns 6 km apenas, fui andando a caminho da casa do casal Dulce e Prezado. E foi agradável a caminhada, pois passei por locais em que não passava há muitos anos. Como a velha Fábrica dos Leões, outrora uma grande potência no ramo das massas alimentícias e onde mamãe trabalhou por muitos anos com grande sacrifício. Hoje, ali, é uma dependência da Universidade de Évora.
Cheguei ao destino e pela fresta do portão vi o meu amigo com a arma na mão tentando afugentar aqueles pardais que não caíssem com os chumbinhos da pressão; era a veia de caçador em acção...
Fui o primeiro a chegar e o anfitrião tão pouco sabia que eu tinha sido convidado... Mas essas coisas não têm a mínima importância no nosso tipo de relacionamento entre amigos. As lebres estavam a assar. Os demais foram chegando e foram-me apresentados os que não conhecia.
Enquanto as lebres assavam, saboreámos umas deliciosas ameijoas. O vinho, um maravilhoso tinto alentejano, foi correndo goela abaixo de cada um dos presentes e esgotava-se uma garrafa atrás da outra.
Finalmente chegaram as lebres á mesa. O aroma maravilhoso e o sabor divino. Coisa da Deusa romana da caça, a nossa muito conhecida Diana que tem na cidade um grande templo em sua homenagem... Sei que há muitos anos eu não tinha tão grande prazer à mesa, pois caça sòmente aqui.
Comidas as lebres muito bem regadas, tomámos uma maravilhosa aguardente de medronhos que veio directamente do Algarve para nós. Não imaginam a octanagem daquela bebida caseira... E o pessoal não se contentou em saborear um gole e sim o cálice cheio a ser emborcado.
Não satisfeitos, arrematámos com um tradicional Licor Beirão e a desgraça foi assim configurada com dois "estrangeiros" na mesa alentejana --- um algarvio e outro beirão.
Eu vi que os companheiros foram-se retirando aos poucos e quando dei por mim, estava só com os anfitriões. Vim embora também e do mesmo modo que fui regressei. Do mesmo modo? Não! Tudo me pareceu estar fora do lugar naquela noite estrelada. Até mesmo as estrelas me confundiam, se é que eu tinha naquele momento capacidade para distinguir o mapeamento celeste dos dois hemisférios...
Reconheci que estava muito mal e reconheço que há muitos, muitos anos eu não apanhava uma carraspana daquele calibre. Achando-me perdido e incapacitado, ainda tive o descernimento de apertar a tecla no telemóvel para pedir à mãe dos meus filhos (ex esposa) que mandasse um taxi para me pegar. Era a única tábua de salvação. Mas do outro lado ouvi: "Jamais aturei bebedeiras na minha vida e não será hoje que irei aturar!". Interpretei isso como uma incompreensão e falta de solidariedade, achando mesmo que foi desrespeitado um certo Código de Ética que costuma estar afixado nas paredes dos bares.
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