Não doeu nadinha. Olhava de soslaio um bando de gente em volta de um caixote preto; ou quase preto, com raríssimas flores silvestres sem perfume. Era um velho pedido porque não tem cheiro pior que velas e rosas juntas. Fica purgando as entranhas de
nossas narinas por séculos. Daí o tal "cheiro de defunto" tão encarniçado.
Ninguém chorava meu embarque. Estava tudo bacana. Sorrisos marotos de uns e outros alem de pensamentos desajeitados. Dei um flagra num fulano tirando uma onda no pensamento: "será que deixou dívidas?; será que tem seguro de vida?; e bens?;
com quem vai repartir?". Pensou até errado pois morto não reparte mais nada, fica prá quem fica e fim.
Engraçado é que tudo que pensavam eu ouvia de um jeito todo diferente. Uns pensavam que poderia ter uns quitutes, outros uma
comidinha salgada, acolá uma "tubaina" ( Tubaina? Pobre não muda nem em velório).
Um pastor anglicano quis puxar uma encomenda e foi barrado! Pera aí: Não sou da Inglaterra, lá com tais divisões religiosas e culpas de Maria Tudor que morreu e Dona Rainha Elizabeth I (1558-1608) que lascou Bill e Rui com 39 artigos. Se ao menos fosse
uma ladainha de carpideiras chorosas ou um terço puxado em latim que ninguém entende ia até curtir; mas um pastor se fazendo
de Lorde é demais. Ainda bem que deram linha no dito cujo: " Fazemos nós mesmo a encomenda de nosso defunto".
Lembrei-me de uns casos de bebuns que corriam chapéus arrecadando quireras pra a virada da noite com trago da marvada quando a conversa escasseia e o povo some depois de fazer uma presença. Quem já curtiu um defunto sabe do abacaxi de ficar uns
dois ou três sentados sem assunto; só com cachaça !...
E o cortejo? -- puta que o pariu! Porque cismaram de lavar no braço o tal paletó de madeira. O que tinha de neguinho reclamando do
peso nunca tinha lido, visto ou ouvido. A merda agora é que sei da intenção da rapaziada. Todos querem fazer uma fita pros familiares da vítima fatal. Que chato sacar a ideia dos outros. Até que na falsidade é melhor. A gente finge que sente e o outro
finge que sentiu e fica o dito pelo não dito.
Como dizia meu amigo Lauro Miguel, voltei. Voltei por todos canteiros e ruelas do campo santo até chegar num poço. Só agora entendi porque os antigos compravam terreno em cemitérios; caraca! que buraco esquisito... mas vamos lá.
Como foi indolor minha passagem de turno, estava na maior leseira. Tudo bem como transeunte do tempo se é esse o preço da vida. Nascemos com a morte certa e caminhos tortos. Só pra ser gauche na vida, como diria Drummond; se não fosse ela cheia de desejos dias azuis.
Mas, e a terra na cara de tantos beijos e quantos sóis? Vá lá... tá tudo aí mesmo; e os esfregas em tantas lamas quando andava a esmo? Foi treino. Tudo bem!
De repente ouço um repicar de tambor, um choro de cavaquinho e uma cuíca chorosa. Tinha me esquecido que pedi pro Bita e o Neném puxarem um samba na hora "h". Mas, e essa bosta de cuíca? Quem tá tocando? Deixa prá lá! O combinado é que não fosse aquela velha estória de " quem parte leva saudade..." Leva o baralho; nem dor e nem piedade. Depois de alguns dias tudo se engrena e ninguém lembra mais de nada.
A música combinada era aquela: ... o samba mandou lhe dizer... és a minha inspiração... quero chorar o seu choro e sorrir teu sorriso: a Amizade. Pelo menos a musica tá certa. Sempre que tava no samba, lá pelas tantas cervas o Bita, que sempre teve um carinho por mim, fazia homenagem pro tonto que se desmanchava todo. Obrigado meus velhos companheiros de alegria
porque é o que fica mesmo; sãos esses corações acesos.
Mas vou ter que dizer adeus... Tá todo mundo indo embora e eu aqui sozinho olhando pro fundo desse poço. Tudo bem que não tá doendo nada. Mas nunca gostei da solidão.
"Au, au, au, au" --- ixi! É a Bina latindo? Tô vivo? Que será?...
Marcílio de Freitas
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