Sei que atalaia é uma palavra oriunda do árabe (at-talai’a) e garanto que não fui ver isso no dicionário agora, pois há muito tempo gravei na memória tudo o que com ela se relaciona, por motivos vários e óbvios.
O primeio contacto que tive com essa palavra poderá até ter sido durante as aulas de história ou quando devorava livros nos meus estudos de formação escolar com essa disciplina relacionados. Afinal, atalaia é uma torre ou lugar de vigia e são pródigas nos castelos portugueses, que antes fôram dos mouros na sua maioria e figurava nos livros do mesmo modo que barbacã e outras.
O segundo contacto com a palavra já foi com ela grifada em letra maiúscula, como nome próprio, e foi aqui que ela passou a ser mais importante para mim. Era e é o nome de rua de um dos mais tradicionais bairros de Lisboa --- o Bairro Alto.
Houve uma época em que conhecia mais de uma centena de nomes de ruas de Lisboa. Poderia até garantir serem duas ou três. Situava-me muito fàcilmente na sua localização geográfica. Fui para lá viver e trabalhar no meu primeiro emprego formal aos 15 anos e totalmente independente. Não fugi de casa; foi um dos caminhos da vida.
Palmilhava a cidade de lés a lés e intercalava nas minhas andanças a pendura nos elétricos (bondes) num jogo de gato e rato com o revisor, evitando uma pontoada, chegando mesmo a ser perito na abordagem e no pular fóra, na alta velocidade que o motorneiro imprimia propositadamente para me sacanear. Era coisa de gaiato naqueles tempos, mas era também para mim uma necessidade… Inevitàvelmente gravava os nomes das ruas e o número das linhas dos elétricos e autocarros e seus trajectos.
Entre os muitos nomes das ruas assimilados, o de Rua da Atalaia ficou gravado qual baixo relevo com sulcos profundos, mas sem ser aurifugiado, se bem que por causa de um local mais conhecido pelo número e não pelo nome. Qualquer frequentador habitual de casas de putas sabia onde era o 124 em Lisboa, bem como o 85 ou o 12, mesmo que em bairros diferentes.
O 124 da Rua da Atalaia era o meu local preferido. Subia aquela escadaria íngreme e ía sentar-me num dos bancos corrediços da sala a exemplo dos demais clientes. Só que fui lá muitas vezes merencório, não como cliente e sim para me abrigar do frio dos dias avesseiros e noites gélidas de Lisboa.
Misturava-se a isso a curiosidade sobre o desenrolar dos negócios, a admiração de algumas belas mulheres e, sem dúvida, a vontade e ansiedade que se atarracavam na minha timidez. Era um potencial cliente, mas sempre adiava, sine die, o grande momento da perda dos três vinténs (cabaço).
Finalmente, chegou o “Dia D”. Acho que melhor seria nomeá-lo como o “Dia E”, uma vez que não se tratou de um desembarque e sim um embarque… Sei que até gravei a data numa daquelas agendas de bolso, que sempre carregava comigo, a exemplo do nome de filmes ou outros eventos a que assistia. Ainda a guardo alhures.
Nesse dia subi as escadas e, como sempre, sentei-me num daqueles bancos. Acho que estava diferente e a minha expressão deve ter-me denunciado. Ouvi duas ou três vezes a voz da patrôa gritando, como sempre, “senhores, vamos para os quartos!”. Era coisa do negócio.
Enquanto isso, lá estava eu quieto no meu cantinho. Foi então que a patrôa se aproximou de mim e, numa atitude objurgatória, disse: “ou vai para o quarto, ou vai fazer sala noutro lugar!”. Aquilo pegou-me de surpresa e deixou-me meio atordoado. Decidi que tinha que ser daquela vez. Pisquei o olho para a melhor das piores que restaram sem parceiro e lá fômos nós.
A mulher, bem mais velha que eu, não era nada escultural e não se encaixava nas minhas preferências. Mas tinha que ser e foi… E foi, também, uma grande decepção para mim. De certo que ela percebeu que era a minha primeira vez e radicalizou no seu profissionalismo ao invés de contornar a situação e agir com o saber que essas situações exigem. Durou alguns segundos apenas o meu ponto de gôzo, mas continuei de pau duro pronto para uma segunda ou, quiçá, uma terceira, o que era normal naqueles tenros anos dourados…
Eu queria mais uma vez e sugeri-lhe isso. Ouvi dela que, mais uma vez, custaria mais cinquentinha. Mas, como aquela notinha era a única que eu tinha no bolso e custou-me muito para ganhá-la, a farra parou ali e fiquei com uma lembrança muito ruim para o resto da vida, independentemente de muitos momentos bons que vivi.
Ainda hoje, quando vou a Lisboa, sempre passo na Rua da Atalaia, mas na outra ponta que termina na Calçada do Combro. Jamais passei no 124 e até porque essas zonas de prostituição legalizada fôram extintas há muitos anos e eu há outros tantos deixei de procurar profissionais do ramo. Naquela rua eu costumava ir, mais recentemente, noutros dois números que nunca gravei, onde ficava a oficina do sr. Eugénio, pai de um amigo meu, e um restaurante dos meus preferidos.
Da última vez, há oito anos atrás, soube que o sr. Eugénio já tinha falecido. Mas ainda tinha um ponto da Rua da Atalaia a ser revisitado --- o restaurante. É uma casa pequena com uma minúscula sala térrea e um mezanino adicional. Mas a comida é muito boa, principalmente os pratos à base de pescado.
Mesmo que o restaurante venha a desaparecer um dia, nunca deixarei de passar por ali para matar saudades de momentos que marcaram muito. Ali era uma espécie de meu território. Na baixada da Calçada do Combro tinha a Escola Dona Maria II onde cheguei a frequentar o curso nocturno. Por ali eu sempre estava de atalaia.