Carta do Bispo de Dili à viúva do Ten-Coronel Maggiolo Gouveia
Há muito que me pesam no coração a dolorosa ansiedade e a cruel angústia de V.Exª. e de todos quantos têm, em Timor, os seus entes queridos e têm estado sem notícias deles. Por S. Exª. Revª. o Pró-Núncio Apostólico em Jacarta, sei, agora, que V. Exª. vive mergulhada em grande aflição e tristeza por absoluta falta de notícias e que pediu à Santa Sé informações sobre a situação do seu extremoso marido. É mais uma falta da minha parte. Mas, como compreenderá, nem sempre é possível escrever em pleno fragor da guerra. A vida começa, agora, tanto quanto é possível, a normalizar-se na cidade de Díli e nalgumas vilas da Província e, por isso, apresso-me a escrever-lhe esta carta, através da mesma Nunciatura em Jacarta que, espero, a fará chegar à mãos de V. Exª..
Durante o período da guerra, como V. Exª sabe, tenho acompanhado, mais ou menos de perto, directa ou indirectamente, a sorte dos nossos queridos prisioneiros e, por isso, a do seu Exmº Marido e meu caríssimo amigo Tenente-Coronel Maggiolo Gouveia. Particularmente assisti-lhe com assiduidade, quando ele baixou ao hospital sem gravidade, mas onde se manteve até ao dia 7 de Dezembro de 1975. Nesta data, a FRETILIN levou, para Aileu, todos os doentes presos, como aliás todos os seus prisioneiros, detidos em Díli, que andariam à volta de uns 800. (1)
Foi, então, que perdemos o contacto com os presos. Todos nós sentíamos a sensação de nos encontrarmos num túnel de curva fechada e vivíamos horas cheias de angústia, situações de terror e como de contínuo suspensos sobre o abismo da morte. Deus e só Deus, era a nossa esperança: ao coração d’Ele fazíamos e continuamos a fazer insistente violência.
Só agora, - e já vão sete meses de guerra – começa a raiar esquivamente a aurora de possíveis dias de paz: começa a haver tranquilidade e confiança e a vida está a voltar à normalidade. E, também, só agora, estão chegando daqui e dali, do interior da Província, notícias do que por lá se passou. Estão aparecendo alguns prisioneiros levados pela FRETILIN, mas são muito poucos, os suficientes, porém, para por eles se saber os que não mais voltarão, porque foram mortos pelas forças comunistas. E entre estes que não mais voltarão, porque seguiram rumo à Casa do Pai do Céu, está o nosso querido Tenente-Coronel Maggiolo Gouveia: fez parte de mais de mil prisioneiros executados pela FRETILIN, no altar do ódio a Deus, à Família e à Pátria.
É deveras dolorosa esta minha missão de lhe anunciar que Seu extremoso marido não pertence já ao número dos vivos “neste vale de lágrimas”, deu a sua vida pela fé e pela Pátria, morreu como um autêntico cristão, como um homem inteiriço, como um militar da têmpera desses militares de antanho, que são o orgulho e exemplo da nossa gloriosa História. É natural, minha Senhora, que o seu coração de esposa sangre de dor e que a Sua alma mergulhe na tristeza mais atroz; mas quando um homem morre como o seu marido morreu, herói da fé e da Pátria, é mais motivo para dar graças a Deus e honrar-se em tal morte do que para lamentações e lutos (...)
A execução devia ter sido entre 9 e 15 de Dezembro de 75. Neste momento, ainda não me é possível averiguar a data exacta. (1). Sei apenas, como atrás disse, que todos os presos tinham sido levados de Díli para Aileu, em condições das mais desumanas. (2) Em dia que não consegui ainda precisar, mandaram reunir todos os presos, como era rotina, e foi feita a chamada de cerca de 50 a 60 homens, incluindo o nome de Maggiolo Gouveia, que sucessivamente iam alinhando no terraço. A este grupo, escoltado pela milícia armada, como era hábito, foi dada ordem de marcha em relação à estrada Aileu-Maubisse. Chegados aqui, e percorridos uns metros de estrada, soou a voz de “alto” e o grupo parou e viu-se próximo de uma grande vala, previamente aberta ao lado da estrada. É-lhes, então, dito que todos vão, ali, ser fuzilados. Há um momento de consternação e estremecimento colectivos. As milícias põem a arma à cara: e é então que o Tenente-Coronel Maggiolo Gouveia levanta a voz e diz: “Senhores, deixem-nos rezar.” E todo o grupo, de joelhos em terra, reza o terço a Nossa Senhora, dirigido pelo Tenente-Coronel Maggiolo Gouveia. Terminado este e estando todos ainda de joelhos, encoraja e anima os seus companheiros “condenados à morte” e termina dizendo: “Irmãos, breve vamos comparecer na presença de Deus e Pai; façamos o nosso acto de contrição, o nosso acto de amor”. E, em silêncio, intercortado de lágrimas, os corações daqueles homens sobem a Deus para pedir... para lembrar..., e dizer... aquilo de que, naquela hora verdadeira, Deus é o único testemunho. Depois, o Tenente-Coronel põe-se de pé, sendo seguido neste gesto pelos seus companheiros, e dirige-se aos soldados-algozes nestes termos: “Irmãos, nós estamos já preparados para comparecer no Tribunal de Deus, lá vos esperamos também a vós. O meu único crime foi o de não renegar a minha fé e o de amar Timor. Morro por Timor. Morro pela minha Pátria e pela minha fé católica. Podeis disparar”. Evidentemente, os soldados timorenses ficam como que petrificados. Não se movem, nem se atrevem a pôr arma à cara. É um estrangeiro que rompe o silêncio nestes primeiros instantes e quebra a indecisão daqueles soldados nativos: põe ele a arma à cara e dispara contra o Tenente-Coronel Maggiolo. E, logo a seguir, todos os outros soldados fazem o mesmo, abatendo, com rajadas sucessivas, todos os presos. (Esta narrativa – quero que o saiba, minha Senhora – ouvi-a da boca de um dos presos de Aileu, o Administrador de Concelho de Maubisse, Lúcio da Encarnação, que a ouviu, por sua vez, dos próprios soldados algozes e que, ao fim, foi salvo pelas milícias de Ainaro).
Assim morrem os heróis. Assim morreu o Tenente-Coronel Alberto Maggiolo Gouveia. E quem assim morre, é orgulho para os pais, para a esposa, para os filhos e para a Pátria; e desta forma, não é a morte que coroa a vida, é a glória eterna em Deus, que sublima a morte. E mais vale morrer com glória do que viver com desonra – eram desta têmpera os portugueses de antanho. – Foi a ideia-força na vida deste Homem, deste Cristão e deste Oficial do Exército Português, de Maggiolo Gouveia. Se, como piedosamente cremos, ele continua a viver no Céu, junto de Deus, também viverá no coração dos timorenses, enquanto a memória dos homens não se desvanecer.
Desculpe, minha Senhora, fui muito extenso e não disse tudo, mas penso que seria esta a melhor forma de mitigar a sua grande dor, de pedir-lhe que tenha coragem na vida para vencer até ao fim, onde o encontrará, e de exortá-la à confiança em Deus, que é o melhor dos pais e que, assim, a começa a preparar para “esse encontro” na meta final da vida.
Aqui vão, Senhora D. Maria Natália, para V. Exª., para os seus filhos e para a demais família, as minhas profundas condolências e a expressão da minha comunhão de orações de sufrágio, com os meus sentimentos de religiosa estima e muita consideração.
De Vossa Excelência, servo inútil em Cristo
Em 10 de Março de 1976
José Joaquim Ribeiro
Bispo de Díli
Notas:
(1) No aspecto legal, o Tribunal Judicial de Abrantes considerou a sua morte presumida em 8-12-75, sendo esta data publicada na Ordem do Exército.
Entretanto, através de fontes ligados a D. Ximenes Belo à Igreja Católica, veio a confirmar-se o fuzilamento de Maggiolo Gouveia e dos seus companheiros na antevéspera do Natal de 1975, e tal como referi anteriormente, ordenado pelo comité central da FRETILIN, ao qual pertencia Xanana Gusmão.
(2) Recortada a notícia de Maggiolo Gouveia ter feito o percurso a pé, carregando um cunhete de munições.
Do Livro "Timor -- Abandono e Tragédia"
Dos autores
Cor. Morais Silva e Manuel Amaro Bernardo
Sem comentários:
Enviar um comentário